Por um ano realmente novo – Goldin (Consultório, Revista O Globo)

Coluna de O GLOBO de domingo, 01 de janeiro de 2012
“TENHO OBSERVADO EM MIM UMA CONSTANTE insatisfação com TUDO, no trabalho, nos amigos, no namoro, enfim, com tudo mesmo.
No trabalho tenho sempre uma reclamação, querendo sempre um ambiente “ideal”.
No relacionamento é pior ainda, nunca estou satisfeita, acho sempre que tem que melhorar alguma coisa, da parte dele. É uma insatisfação tão grande, que acho sempre que não sou querida pelas pessoas, por todas elas, fico sempre achando que quando recebo um elogio tem por trás algum outro interesse, já que frequentemente ouço que sou chata e que reclamo de tudo.
Acho que as coisas tem que ser muito certas, o que foi dito deve ser cumprido. Na adolescência pensei que deveria ser advogada já que reclamava muito e era persistente.
Tenho imensa dificuldade nos relacionamentos, estou no meu 4° relacionamento longo, tenho 25 anos, e todos eles foram muito conturbados, muitas brigas sempre…
Agora estou passando uma fase de altíssima angustia, quando acho que estou sendo enganada, fico tão nervosa que meu corpo inteiro treme e sinto calafrios.
Já comprei livros, já fiz terapia, vou à igreja e tento ser mais, mas não sei o que acontece comigo, começo a crer que sou realmente chata, reclamona e uma presença indesejada”.
Sonia
TENHO QUE ADMITIR QUE HOJE É UM DOMINGO DIFERENTE , basicamente por ser o primeiro do ano. As comemorações e fogos de artifício da noite passada confirmam que outro ano passou, com suas boas e más notícias, nascimentos e mortes, construções e destruições. Enfim, um dia excelente para refletir, reciclar preocupações, renovar esperanças, somar ganhos e lamentar perdas. Não é um domingo qualquer e, enquanto passam suas horas, percebo com maior nitidez terceiras idades, sonhos futuros em espera e sonhos realizados perdendo atualidade… Minha conclusão óbvia é que o tempo passa.
Preciso responder à Sonia. Sua carta remete ao sentimento universal de frustração. Tem em mente um mundo ideal e o compara com o real, que sempre é pior. Por isso seus namorados, amigos e colegas de trabalho são inadequados e, por isso, seu universo funciona mal, dando constante defeito…
Meu primeiro impulso foi concordar com ela, quando se considera uma pessoa chata. Reclamar é chato, porque contamina qualquer cenário com a própria frustração. Admito que seus opostos, tolerância e bom humor, são produtos escassos…
Acredito que os únicos seres realmente felizes são as crianças pequenas, quando não estão com dor, fome, frio, sono ou desamparo e brincando com as mães riem no volume máximo, com risada cristalina, verdadeiro concentrado de felicidade. Quando as crianças crescem tudo fica mais complicado, acumulam-se as frustrações e a felicidade é depositada no subsolo do sujeito. Aqui o universo se divide entre os bem humorados, que toleram as decepções conservando a felicidade infantil e os outros que, como Sonia, dominados pela frustração, protestam. É verdade que há vidas mais afortunadas do que outras, porém Sonia é infeliz onde poderia não ser. O grande projeto cultural da espécie humana é, em essência, ensinar às pessoas a renunciar às suas fantasias idealizadas e aceitar a realidade com suas limitações, ou seja, aceitar viver num mundo possível.
Sonia permaneceu infantil quando se irrita por habitar um planeta que não está feito sob medida para ela, por isso precisa, com bastante urgência, decifrá-lo e aprender a suportá-lo sem queixas, porém trabalhando duro para torná-lo mais adequado às suas necessidades. É inútil se irritar ou reclamar, só cabe entendê-lo para melhorá-lo. Aprender a viver e decifrar a diferença entre fantasia e realidade e a irritação denuncia o fracasso da aprendizagem.
À semelhança de crianças que se negam a comer porque a comida oferecida não é como esperavam. Não tenho fórmulas melhores para a Sonia. É honesta quando reconhece sua chatice e admirável em seu empenho de viver num mundo melhor. Poderia colocar estas virtudes a serviço de um programa acelerado de crescimento, que lhe permita entrar no mundo que hoje rejeita e a partir desta plataforma, resgatar a alegria do fundo da sua alma. Os chatos, do seu modo, são românticos e otimistas, porque querem que tudo seja melhor, porém erram no procedimento para consegui-lo. Sonia, madura, poderá receber melhor 2012. Poderá ser tolerante como adulta e alegre como criança. Um bom projeto para começar o ano.
ALBERTO GOLDIN 
Esse texto explica bem minha fonte de insatisfação. O mal-humorado, no fundo, é um otimista. Que espera o melhor das pessoas. Que tem um senso de justiça muito grande e quer que as pessoas vivam em harmonia. Alguém que espera um mundo melhor. E se decepciona. Texto lido no primeiro dia do ano. E relembrado o resto do ano, o ano do fim da tolerância.